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Considerações a respeito da Requisição Administrativa
Francisco Octavio de Almeida Prado Filho
Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP
Tendo em vista os inúmeros casos recentes de utilização da requisição administrativa como instrumento para aquisição e uso de bens e equipamentos para o combate à COVID19, entendemos ser oportuno traçar algumas considerações a respeito do instituto e sua disciplina jurídica, de forma a estabelecer alguns parâmetros para sua utilização.
A requisição administrativa tem fundamento constitucional, sendo expressamente prevista no artigo 5º, XXV da Constituição, nos seguintes termos:
Art. 5º …
…
XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;
A iminência de perigo público é, portanto, requisito para a requisição, a ser determinada por autoridade competente, sendo assegurada indenização ulterior.
A exemplo da desapropriação, o instituto da requisição administrativa é instrumento de concretização do princípio da Supremacia do Interesse Público, como bem assinala o Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello[1]:
“O princípio da supremacia do interesse público é princípio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência. (…). Afinal, o princípio em causa é um pressuposto lógico do convívio social. Para o Direito Administrativo interessam apenas os aspectos de sua expressão na esfera administrativa. Para não deixar sem referência constitucional algumas aplicações concretas especificamente dispostas na Lei Maior e pertinentes ao Direito Administrativo, basta referir os institutos da desapropriação e da requisição (art. 5º, XXIV e XXV), nos quais é evidente a supremacia do interesse público sobre o interesse privado.”
Diferente do que ocorre na desapropriação, entretanto, a Constituição prevê indenização posterior – e não prévia – na hipótese de ocorrer prejuízo. Cabe indagar, portanto, qual a razão para a diferença de tratamento?
Ao menos duas razões se afiguram evidentes: i) havendo perigo público iminente, não se justifica condicionar o uso do bem a uma indenização prévia, devendo prevalecer o atendimento à urgente necessidade pública; e ii) considerando que, em regra, pela própria natureza do instituto, o uso do bem é temporário e esse tempo é indefinido, nem sempre é possível arbitrar previamente o prejuízo e, consequentemente, o valor da indenização.
O questionamento a respeito dessas razões mostra-se relevante pois, como adverte o Prof. Celso Antônio “os poderes administrativos – na realidade deveres-poderes – só existirão – e, portanto, só poderão ser validamente exercidos – na extensão e intensidade proporcionais ao que seja irrecusavelmente requerido para o atendimento do escopo legal a que estão vinculados”[2].
Essa ideia de função, de poderes instrumentais, estritamente vinculados a um determinado fim de interesse público, tão bem exposta pelo festejado Professor, é essencial para que se possa começar a traçar os contornos, requisitos e limites jurídicos à utilização da requisição administrativa.
Com relação à legislação ordinária, tem-se que a lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, tratou especificamente a respeito da possibilidade da utilização da requisição administrativa como uma das medidas a ser utilizada para enfrentamento da pandemia.
É o que dispõe a lei em que artigo 3, VII:
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:
(…)
VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e
Em consonância com o texto constitucional, a lei prevê indenização posterior, acrescendo que deve ser justa, atributo que, ao menos em tese, deveria ser pressuposto de qualquer indenização.
Mas a lei não se limita a essa determinação, esclarecendo, no parágrafo primeiro do mesmo dispositivo, que “as medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública”.
Assim, em linha com a constituição da república, conforme as diretrizes estabelecidas no início do presente artigo, a lei limita a utilização da requisição administrativa – assim como dos outros instrumentos nela previstos – ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública, estabelecendo, ainda, que as decisões devem ser tomadas com base em “evidências científicas” e “em análise sobre as informações estratégicas em saúde”.
Com relação à competência, a lei também é expressa ao afirmar que as requisições administrativas poderão ser adotadas pelo Ministério da Saúde e/ou pelos gestores locais de saúde, independente de autorização de órgão ou autoridade federal[3].
A competência fixada pela lei está em prefeita consonância com a norma constitucional, mais especificamente com os artigos 30, VII e 198, I da constituição da república[4].
A Constituição exige e a lei pressupõe uma atuação integrada e entre União, Estados e Municípios na gestão da saúde pública e, mais especificamente, na criação e adoção de estratégias de combate à epidemia de forma coordenada.
Infelizmente, ainda não se vê, na prática, a integração e coordenação necessárias, havendo discordâncias e, em alguns casos, até mesmo conflito entre as estratégias adotadas pelos diversos entes federativos.
A despeito da situação excepcional decorrente deste grave momento, a ordem jurídica prevalece e deve ser respeitada.
Especificamente com relação à requisição administrativa, somente poderá ser utilizada em caso de evidente necessidade, em hipóteses em que a autoridade competente não tiver outro meio hábil e eficiente para assegurar o interesse público, as ferramentas e insumos necessários à prestação dos serviços de saúde para o combate à pandemia.
Assim, por exemplo, se um determinado produto estiver disponível para compra, por valor de mercado, e a Administração puder, sem prejuízo do interesse público, firmar contratos de emergência, com dispensa de licitação, não caberá utilizar a requisição administrativa, a não ser em hipótese de uso temporário de bens passíveis de serem reutilizados, sem grande depreciação.
Há que se avaliar ainda, caso a caso, se o bem já está ou não destinado à finalidade de combate à epidemia, como é a hipótese de bens adquiridos pelos entes federativos para dar cumprimento às estratégias anteriormente traçadas, caso em que a requisição pelos demais entes pode não se justificar.
Vale ressaltar, neste ponto, que o reconhecimento da prerrogativa excepcional de a Administração pública requisitar o uso de bens particulares não desobriga o administrador do dever de motivar o ato. Tal motivação deve ser prévia ou consentânea à expedição do ato e com base nela é que o ato será sindicado, inclusive para apuração de eventual desvio de finalidade.
Com relação à indenização justa, deve ser paga no primeiro momento possível, assim que determinado seu valor, que deve incluir o lucro razoável do fornecedor, de acordo com as condições normais de mercado, quando for o caso, até mesmo como estímulo à continuidade da produção.
Uma possibilidade, nesse caso, é a definição do valor da indenização com a utilização dos critérios de estimativa de preços previstos no artigo 4º-E da lei 13.979/2020, incluído pela MP 926/2020:
Art. 4º-E Nas contratações para aquisição de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência que trata esta Lei, será admitida a apresentação de termo de referência simplificado ou de projeto básico simplificado.
(…)
VI – estimativas dos preços obtidos por meio de, no mínimo, um dos seguintes parâmetros:
Para garantia de maior segurança jurídica, inclusive do administrador público, recomenda-se aos diversos entes federativos que regulamentem a matéria, indicando de forma clara e objetiva os critérios e procedimentos a serem utilizados para a indenização.
Em toda e qualquer situação, há que se avaliar a competência da autoridade para a tomada da decisão.
[1] Curso de Direito Administrativo, 28ª ed., Malheiros Editores, 2011, p. 96
[2] Ob. cit. p. 99
[3] Lei 13.979, art. 3º, §7º, I e III
[4] Art. 30. Compete aos Municípios:
(…)
VII – prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população;
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
(…)