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Diálogo competitivo: comparação com o diálogo concorrencial português e desafios para implementação no Brasil.
Francisco Octavio de Almeida Prado Filho
Gabriela Vilela Buzzo
Lais Rodrigues Migliorini
*artigo publicado no informativo Migalhas em 13 de fevereiro de 2023
Para melhor entender o instituto do Diálogo Competitivo, nova modalidade de licitação prevista na Lei 14.133/2021, é importante compreender como foi implementado e como funciona na prática o diálogo concorrencial português, bem como as influências que um instituto exerceu na concepção do outro.
De início, cabe pontuar que o diálogo concorrencial português, previsto no Código de Contratos Públicos, seguiu as diretrizes definidas pelo parlamento europeu, tendo sua origem no artigo 29 da Diretiva 2004/18/CE, de 31 de março de 2004.
Passados dez anos, foi editada a Diretiva 2014/18/CE, que revogou a Diretiva de 2004 e atualizou as disposições a respeito do processo adjudicatório de contratos públicos no âmbito da União Europeia.
A novidade da Diretiva da União Europeia de 2014, em relação a de 2004, é que o Diálogo Concorrencial passou a ter seu instituto obrigatoriamente previsto na legislação de todos os Estados Membros. Antes disso, sua adoção na legislação interna de cada país membro era facultativa.
“Ressalta-se que a utilização do procedimento diálogo concorrencial não é paritária entre os Estados-Membros da União Europeia que leva em consideração as peculiaridades sociais, culturais e jurídicas de cada país.”
Em Portugal, Estado-membro europeu provavelmente com o sistema jurídico mais próximo ao brasileiro, o diálogo concorrencial está previsto no art. 29 do Código de Contratos Públicos (CCP) – Decreto-Lei nº 18/2008.
O dispositivo português previu que a entidade adjudicante poderá adotar o procedimento de negociação ou o diálogo concorrencial quando as suas necessidades não possam ser satisfeitas sem a adaptação de soluções facilmente disponíveis ou quando os bens ou serviços incluírem a conceção de soluções inovadoras.
E, ainda, quando não for objetivamente possível adjudicar o contrato sem negociações prévias devido a circunstâncias específicas relacionadas com a sua natureza, complexidade, montagem jurídica e financeira ou devido aos riscos a ela associados e não for possível definir com precisão as especificações técnicas por referência a uma norma, homologação técnica europeia, especificações técnicas comuns ou referência técnica.
Originalmente, a previsão do diálogo concorrencial surge para legitimar o procedimento por negociação para projetos complexos, que já era uma modalidade de licitação praticada em alguns países da União Europeia.
No Brasil, a Lei que regia as licitações e contratos administrativos, lei 8.666/1993, passou por uma remodelação que culminou com a lei 14.133/2021, a nova lei de licitações e contratos administrativos, com o claro intuito de “modernização das leis brasileiras relativas à formação, formalização e execução dos contratos públicos “.
Na legislação brasileira, o cabimento do diálogo competitivo está previsto no art. 32 do novo diploma.
A previsão é que a modalidade de licitação seja restrita a contratações com as seguintes condições: a) Administração vise a contratar objeto que envolva inovação tecnológica ou técnica; b) impossibilidade de o órgão ou entidade ter sua necessidade satisfeita sem a adaptação de soluções disponíveis no mercado; e c) impossibilidade de as especificações técnicas serem definidas com precisão suficiente pela Administração.
A lei ainda prevê, para a adoção da nova modalidade licitatória, a hipótese em que a Administração verifica a necessidade de definir e identificar os meios e as alternativas que possam satisfazer suas necessidades, sejam elas a solução técnica mais adequada, os requisitos técnicos aptos a concretizar a solução já definida e a estrutura jurídica ou financeira do contrato.
Para Marçal Justen Filho, o diálogo competitivo reflete uma tendência política e econômica de cooperação no relacionamento entre Administração e particular. Isso porque, “a insuficiência dos recursos estatais exige a cooperação entre Estado e setor privado” .
Nota-se, no todo, que o diálogo competitivo brasileiro, apesar de possuir nomenclatura diversa, é equivalente em muitos aspectos ao regime do diálogo concorrencial da legislação portuguesa, não sendo vinculado aos procedimentos licitatórios tradicionalistas brasileiros, embora tenha sido adequado da realidade europeia para aproximá-lo dos procedimentos burocráticos já existentes.
A despeito de apresentar particularidades quanto aos trâmites procedimentais, as hipóteses de cabimento da das referidas modalidades de licitação nas legislações portuguesa e brasileira se aproximam.
Ritos do Diálogo concorrencial português e do diálogo competitivo brasileiro.
O diálogo concorrencial português previu, basicamente, três fases procedimentais, sejam elas as de candidatura e qualificação, apresentação de soluções e diálogo com os candidatos qualificados e, por fim, julgamento das propostas trazidas pelos licitantes e a respectiva adjudicação. Além disso, a quantidade mínima de candidatos para participar da fase do diálogo não pode ser inferior a três.
As soluções apresentadas, aqui – sendo uma solução por candidato-, nada mais são do que pré-projetos contratuais. Nesse ponto, o diálogo entre os candidatos e a entidade pública, que não tem um prazo mínimo ou máximo de duração, servirá para que se alcance uma construção contratual e, dessa forma, um caderno de encargos para que somente depois ocorra a apresentação das propostas. Na legislação portuguesa, o prazo para apresentação das propostas não será inferior a 30 dias.
Dessa forma, a proposta escolhida será aquela que atenda melhor o interesse público e seja economicamente mais vantajosa .
Similarmente, o diálogo competitivo brasileiro possui procedimento que prevê uma fase inicial ou de pré-seleção (não existindo, aqui, etapa de qualificação que é prevista em Portugal), a fase de diálogo propriamente dita e a fase final, momento em que ocorre a competição entre os licitantes, que irão apresentar propostas para disputar a contratação em sua concepção já definitiva.
“O modelo adotado no Brasil contempla a existência de dois editais num mesmo procedimento licitatório. O edital correspondente à primeira etapa não se subordina, de modo exaustivo, às normas estabelecidas a propósito do tema. Quanto a essa questão, admite-se a preservação de uma margem relevante de discricionariedade da comissão de contratação.”
Feita a publicação do segundo edital, após o fim do diálogo ou da chamada fase competitiva, os licitantes deverão formular suas propostas em um prazo não inferior a 60 dias úteis, contendo os elementos necessários para a realização do projeto. Após a apresentação de propostas, a definição do modo de disputa seguirá as regras peculiares ao critério de julgamento que venha a ser adotado em cada caso.
Ponto importante de ressaltar é que, nessa fase do diálogo, a solução proposta por um licitante não pode ser comunicada aos demais sem o seu consentimento. Em outras palavras, o diálogo é, via de regra, estabelecido entre a Administração e cada um dos licitantes e não entre os diversos participantes. Se for de seu interesse, o ente privado pode autorizar a entidade adjudicante a revelar pontos da solução por ele apresentada aos demais participantes. Tem-se, assim, que durante a fase do diálogo cabe aos licitantes – não à Administração – a decisão a respeito do sigilo ou não das soluções apresentadas.
Para Guilherme Reisdorfer, o mecanismo de conciliação entre sigilo e publicidade é indispensável para a evolução do processo licitatório.
Portanto, assim como a legislação portuguesa, a lei brasileira previu o sigilo dos participantes do diálogo competitivo com a confidencialidade das soluções propostas.
O parágrafo 1º, inciso IV, do art. 32, da nova Lei prevê a proibição da Administração divulgar informações concedidas por um candidato acerca da solução por ele proposta para os demais participantes do certame sem a devida autorização
“Ressalta-se que esse sigilo ocorre somente durante a fase de negociação, pois quando da declaração de conclusão do diálogo competitivo, haverá o registro de todas as gravações ocorridas com os candidatos introduzidas dentro do processo licitatório. Esta premissa acontece tanto no diálogo concorrencial, quanto na legislação brasileira, sendo uma forma dos legisladores resguardarem a transparência do procedimento, garantindo o acesso às informações, a publicidade na fase do diálogo e ainda a prevalência da concorrência entre os candidatos.”
Isto é, “os dados sigilosos não aproveitados permanecerão resguardados, mas aqueles imprescindíveis para a realização da realização da licitação e a confirmação da adequação da escolha da Administração deverão ser devidamente publicizados” (REISDORFER). Logo, pontua-se que o sigilo não é absoluto.
No Brasil, na fase competitiva, todos os licitantes pré-selecionados, e não apenas os que tiveram sua solução escolhida, poderão formular propostas em vista do contrato final definido pela Administração .
Outro ponto que merece destaque, aqui, é que a legislação brasileira não previu o pagamento de um prêmio para os participantes do diálogo competitivo, enquanto a legislação portuguesa dispõe que os candidatos que apresentem uma solução realmente imprescindível para a Administração poderão receber um prêmio à título de pagamento, “com o intuito de que o candidato se sinta beneficiado por sua solução apresentada, assim como para que todos os participantes se sintam estimulados a participar”.
Algumas críticas e desafios à implementação do diálogo competitivo brasileiro
Por mais que a nova modalidade de licitação prometa ser uma solução menos burocrática e mais acessível e flexível para contratações públicas complexas, a verdade é que seu procedimento, além de representar uma novidade, tanto para a Administração quanto para o setor privado, pode ser bastante trabalhoso e oneroso.
“Não parece excessivo dizer que um dos aspectos mais cruciais para a introdução bem-sucedida do diálogo competitivo no direito brasileiro tem a ver com o controle que se aplicará às iniciativas adotadas. Poucos se aventurarão em um processo licitatório que demandará aplicação de recursos consideráveis, engajamento de equipe substancial e meses de maturação sob o risco de essa atividade restar frustrada pela revisão ou pela incerteza em torno das escolhas administrativas” .
Graziella Zarro, em sua dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, acredita que poderão ocorrer dificuldades práticas derivadas do comportamento da própria Administração Pública que poderá efetuar suas escolhas não a partir das soluções apresentadas, mas sim das empresas participantes. Nesse caso, uma mudança cultural de toda a Administração Pública seria necessária.
Outro problema pontuado por Graziella Zarro é a assimetria cognitiva, problema que existe no mundo todo, que consiste na disparidade de conhecimento entre os particulares e o poder público, já que a administração pública desconhece o que vai contratar, além de que pode não ter condições de avaliar com precisão as soluções mais benéficas.
Ademais, considerando-se que é um procedimento de maior complexidade, haverá, por conseguinte, a necessidade de maior investimento de tempo e de recursos financeiros por parte da administração pública, o que, por si só, já gera certa aversão que é acentuada nesse cenário, por conta do medo que o gestor público brasileiro culturalmente tem de mudanças drásticas, em que esse, se possível, sempre optará pela solução “mais segura” e conhecida, que teoricamente já funciona há anos.
Além disso, por se tratar de um procedimento bastante discricionário, poderá gerar insegurança jurídica aos gestores públicos, enquanto não for implementado de forma mais segura na prática
brasileira e não existam jurisprudências ou discussões nesse sentido.
Da mesma forma, Guilherme Reisdorfer aponta que os riscos sobre os agentes públicos nessas circunstâncias inviabilizariam a implementação de uma das soluções mais inovadoras da Lei nº 14.133/2021.
Marçal Justen Filho ressalta que:
“A dimensão inovadora do diálogo competitivo exige o afastamento dos padrões hermenêuticos aplicáveis às modalidades licitatórias comuns e conhecidas. É indispensável tomar em vista que o diálogo competitivo exige um nível de flexibilidade muito intenso, compatível com a dimensão cooperativa do procedimento.”
Uma nova ótica
Para Thiago Marrara , a produção dos efeitos tão esperados dependerá de agentes públicos devidamente preparados e pessoalmente engajados para atuar com respeito incondicional às normas de boa-fé, de isonomia e produção da competição real, justa e ampla. Ausentes essas condições, o diálogo concorrencial correrá o risco de se transformar facilmente em um nicho de corrupção e de benefícios indevidos.
As críticas com relação ao novo procedimento têm sua razão de ser, são preocupações relevantes que não devem ser deixadas de lado. Como qualquer novidade em direito administrativo, no entanto, a tendência natural da doutrina é apontar possíveis defeitos e alertar para o risco de desvio de finalidade em sua utilização, a possibilidade de mau uso do novo procedimento como instrumento para a prática de atos de improbidade administrativa ou corrupção.
Trata-se de uma questão cultural, uma tendência a focar na possibilidade de desvios e distorções possíveis, ao invés de seus possíveis benefícios a serem alcançados.
É exatamente essa tendência que nos fez criar uma legislação extremamente burocrática em matéria de licitações e contratações públicas, orientada pelo receio de que os agentes públicos fossem fazer mau uso dos instrumentos criados para beneficiar a si mesmos e a terceiros, contratantes com o poder público.
Essa tentativa de blindagem através de um regramento excessivo e minucioso, focado em aspectos e procedimentos formais, acabou por criar um sistema ineficiente e que, ainda assim, não foi capaz de evitar desvios e abusos.
Apesar dos inúmeros desafios à implementação do diálogo competitivo entre nós, trata-se de uma oportunidade única de experimentar um modelo menos engessado que tem o potencial de resultar em contratos e soluções mais eficientes para a Administração Pública, condizentes com as necessidades e complexidades do mundo atual.
Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, a ampla discricionariedade – liberdade conferida por lei ao administrador – não prejudica o controle dos atos, nem facilita necessariamente os desvios e a prática de atos de corrupção.
É que essa discricionariedade pressupõe a ampla motivação dos atos do procedimento licitatório e um controle que deve se afastar de aspectos meramente formais, muitas vezes sem grande relevo.
Assim, ganha ainda maior relevância o dever de motivação dos atos administrativos, garantia de transparência da administração, instrumento de proteção do agente público e objeto do controle a ser exercido com observância das normas da LINDB, em especial as alterações introduzidas pela Lei 13.655/2018.
Conclusão
Superados os desafios da implementação na nova modalidade de licitação, espera-se que sua utilização traga benefícios à Administração Pública, com a construção de soluções que atendam o interesse público da melhor forma possível.
A nova Lei de licitações e contratações públicas brasileiras entrou em vigor em 1º de abril de 2021, vigorando hibridamente com a antiga lei nº 8.666/1993, que será finalmente revogada no dia 1º de abril de 2023. O diálogo competitivo é uma de suas grandes novidades.