X
Almeida Prado

Voltar

Direito Eleitoral e Democracia: aproximação necessária
16/12/20

Direito Eleitoral e Democracia: aproximação necessária

 

Francisco Octavio de Almeida Prado Filho

Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP

*artigo publicado no JOTA em 20 de outubro de 2020

(https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/direito-eleitoral-e-democracia-aproximacao-necessaria-20102020)

 

Como país, adotamos caminhos contraditórios ao garantir ampla autonomia e liberdade de criação aos partidos políticos, ao mesmo tempo em que lhes garantimos amplo financiamento público sem qualquer contrapartida.

O modelo adotado criou um forte incentivo à multiplicação de legendas partidárias, muitas delas desprovidas de qualquer identidade ideológica, assegurando-lhes, pela simples existência, recursos financeiros, além de tempo gratuito em rádio e TV (gratuidade assegurada aos partidos, mas suportada por todos em razão da renúncia fiscal).

Essa autonomia financiada é um dos elementos que contribuiu para a criação de alguns partidos com dono, estruturas comandadas por um pequeno número de pessoas, sem qualquer democracia interna. O modelo adotado autorizou e até incentivou que isso acontecesse, ao permitir a existência e o financiamento das atividades partidárias sem que fosse necessário recorrer aos seus eleitores/apoiadores. Bastavam os recursos públicos e, quando estes eram insuficientes, a colaboração de alguns poucos grupos privados, parcela deles com interesse direto nas atividades do Estado.

As soluções até agora adotadas para a correção do modelo vieram por modificações aprovadas pelo Congresso Nacional, órgão naturalmente competente, ou por decisões judiciais, algumas das quais de discutível legitimidade. Ainda não fomos capazes, no entanto, de encaminhar a solução do problema de forma minimamente satisfatória.

A cláusula de desempenho prevista na Lei 9.096/95 foi julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, às vésperas de sua entrada em vigor[1]. O que a lei previa era a exigência de um percentual mínimo de representatividade para que os Partidos tivessem acesso ao funcionamento parlamentar, além do acesso pleno aos recursos do fundo partidário e tempo rádio e TV.

A declaração de inconstitucionalidade da cláusula de desempenho original fez com que uma nova cláusula, bastante mais branda, tivesse que ser objeto de emenda constitucional, a EC 97, promulgada em outubro de 2017, 10 anos após a declaração de inconstitucionalidade da cláusula original. A nova cláusula representa, sem sombra de dúvida, um avanço na direção correta, ainda que insuficiente.

De outro lado, sob o pretexto de reduzir custos de campanha, diversas alterações na lei eleitoral foram aprovadas pelo Legislativo, a maior parte delas em restrição à propaganda eleitoral e à liberdade de discurso político-eleitoral, em evidente prejuízo para a democracia. Sob o pretexto de reduzir custos de campanha, acabamos com uma legislação extremamente restritiva e burocrática, que dificulta a comunicação entre o político e seu eleitor, em caminho exatamente oposto ao que seria desejável. Não é exagero afirmar que é no direito eleitoral que a liberdade de expressão alcança as maiores restrições.

Embalados pelo moralismo vigente e pela aversão generalizada à classe política, deixamos de perceber que tais restrições só beneficiam aqueles que já estão no poder, em detrimento de novas lideranças, bastante limitadas em seu direito constitucional de se comunicar com o eleitor. Não só as novas lideranças saíram prejudicadas, como também todos os cidadãos, privados de um debate mais amplo e aberto a respeito de qualidades e defeitos dos potenciais candidatos.

Avançamos, é certo, com a permissão de uma maior liberdade de discurso no período anterior à campanha oficial, trazida pela Lei nº 13.165, de 2015, mas ainda chegamos ao cúmulo de punir manifestações individuais de cidadãos que queiram expressar sua intenção de voto em determinado candidato antes do período oficial de propaganda eleitoral.

De modo geral, não caminhamos bem e ainda fizemos algumas mudanças no caminho inverso do desejável.

A boa notícia é que também vimos crescer a participação da sociedade civil no debate político, juntamente com o crescimento da consciência dos problemas a serem enfrentados.

Como em quase tudo o que envolve política, não há consenso a respeito dos caminhos a serem traçados, ainda assim valem algumas considerações.

O reconhecimento e a defesa da autonomia dos partidos políticos não impede que deles sejam cobrados parâmetros mínimos de democracia interna e transparência. De outro lado, nada impede que a distribuição de recursos públicos, diretamente ou através de tempo gratuito em rádio e TV, seja orientada por critérios outros que não apenas a representatividade obtida em eleições anteriores. Outros relevantes critérios, também de ordem constitucional, poderiam ser legitimamente adotados. A ampla autonomia para obtenção e aplicação de recursos de natureza privada deve ser preservada.

Com relação ao financiamento privado, a adoção de estímulos à cultura da doação por pessoas físicas seria bastante salutar. Quanto maior o número de doadores, quanto mais pulverizadas forem as doações, melhor para a democracia, seja pelo aumento de participantes ativos no processo eleitoral, seja pela diminuição da influência de cada um deles neste processo.

Com relação às doações por pessoas jurídicas, o problema estava nos critérios utilizados para limitação, não nas doações em si. Caso fossem estipulados limites objetivos para tais doações, um teto nominal que impedisse a concentração de poder e influência em um reduzido número de empresas, estariam criadas as condições para um ambiente saudável de financiamento.

Em todos os casos, a legislação deveria primar por transparência e simplicidade, cobrando responsabilidade das partes envolvidas no processo eleitoral, mas evitando regras complexas e burocráticas que servem apenas para aumentar o custo e a opacidade do sistema.

No que diz respeito às limitações e restrições impostas à propaganda e às manifestações político-eleitorais, é urgente a sua revisão. Neste ponto específico seria absolutamente legítima a atuação do Poder Judiciário para afastar restrições claramente inconstitucionais e dar interpretação conforme a tantas outras, em prestígio à cidadania, aos direitos políticos e à liberdade de expressão.

Por fim, uma convicção: os movimentos pela renovação política, as escolas de formação de novas lideranças, a defesa da representatividade feminina, da igualdade de gênero, da representação dos negros e de minorias são parte da solução, não do problema! Ainda que se possa reconhecer excessos e tecer críticas à forma com que algumas mudanças são implementadas, essa organização e mobilização política da sociedade é bastante salutar, algo relativamente recente e bastante benéfico à nossa democracia.

[1] ADINs 1351-3 e 1354-8

Voltar ao Topo